Artigo - "No princípio era o mythos:
articulações entre Mito, Psicanálise e
Linguagem"
Apresenta algumas das principais concepções de mito,
surgidas no decurso da História do Pensamento, seguindo o
roteiro proposto pelo italiano Nicola Abbagnano, em seu
Dicionário de Filosofia (1961)
Primeira concepção: na Antiguidade Clássica, o Mythos opunha-se ao Lógos (lógica), à Razão e ao discurso filosófico, de
natureza racional, o qual era tido como verdadeiro, e, como tal, contraposto às narrativas míticas. Todavia, a filosofia
penetrava no campo do mito ao estudar questões humanas, como a origem do mundo. O discurso filosófico então racionalizou
e laicizou a narrativa mítica, procurando superá-la e deixando-a como coisa de um passado primitivo. O mito deixa de ser a
explicação para o cotidiano e o cotidiano passa a explicar as construções míticas. Uma tempestade deixava de ser vista como
um acesso de fúria dos deuses e passava a ser vista como um fenômeno natural.
Assim, o surgimento da filosofia, na Grécia Antiga, marca, de acordo com alguns
estudiosos, o declínio do pensamento mítico. Há autores que discordam de tal
lógica tão direta, como Walter Burkert (1991), o qual defende que a filosofia
jamais se emancipara do mito completamente.
Substitui-se, (ponto onde o texto se equivoca ao
não considerar os distintos ritmos em que tal
transformação se dá), a linguagem mítica, toma-se
distância de uma Mitopoiése (criação de mitos) e
insere-se na linguagem do discurso filosófico.
Segunda concepção: o mito é situado em um plano diferente da lógica
científica, mas é dotado de igual valor por ser "uma forma autônoma de
pensamento ou de vida" (ABBAGNANO, 2000, p. 673), possuindo uma lógica
própria, o que pode ser associado a uma forma singular de "fazer" filosófico.
O Romantismo foi uma das vertentes teóricas que
adotaram tal perspectiva, bem como alguns filósofos e
sociólogos, como Ernst Cassirer e Gilbert Durand.
Para Cassirer, partindo de pressupostos hegelianos, o mito teria uma
realidade peculiar para a consciência, sendo uma forma de vida característica
e original, na linha limítrofe entre o objetivo e o subjetivo, uma esfera
indiferenciada entre ambos. Um patrimônio espiritual da humanidade cuja
unidade deve ser explicada pela unidade da alma humana (CASSIRER,
1964/1998), intimamente ligado à linguagem.
Assim, os mitos resultariam de experiências humanas coletivas, sem que seus produtores
tivessem consciência de sua autoria, pois são projeções das interpretações do mundo interior e
das impressões do mundo exterior, transformadas em imagens que não se resumem a metáforas
ou representações, mas são expressões da própria realidade. Por isso, "não podemos reduzir o
mito a certos elementos estáticos fixos, mas procurar apreendê-lo em sua vida interior, em sua
mobilidade e versatilidade, em seu princípio dinâmico." (CASSIRER, 1944,1972a, p. 127)
Durand, em seus livros Imaginação simbólica (1988) e As estruturas
antropológicas do imaginário (1997). defende que "o que importa no mito
não é exclusivamente o encadeamento da narrativa, mas também o
sentido simbólico dos termos" (DURAND, 1997, p. 356), e acrescenta que o
mito tem a mesma estrutura da música, com um ritmo próprio e com a
função não de contar, mas de repetir como o refrão de uma canção.
Terceira concepção: fundamenta-se na moderna teoria sociológica, tendo
Fraser e Malinowski como precursores. Para estes, o mito tem a função única
de dar continuidade à cultura, estando intimamente ligada à natureza da
tradição, à atitude humana em relação ao passado. Assim, o mito não está
ligado só às sociedades primevas, mas é indispensável a qualquer cultura,
sendo necessário "estudá-lo em relação à função que exerce na sociedade
humana" (ABBAGNANO, 2000, p. 675)
Esta tendência não se opõe à segunda concepção,
mas focaliza aspectos diferentes do mito
Dentre os autores que se dedicaram a tal proposta, Lévi-Strauss defendera que cada
grupo social expressa, em suas construções míticas, suas atitudes em relação ao mundo,
bem como as maneiras de resolver os problemas da existência. Assim, o mito não se
sujeita a "nenhuma regra de lógica ou de continuidade" (LÉVI-STRAUSS, 1973/1996, p. 239)
e é considerado como tal enquanto for assim percebido e reconhecido. Os "mitemas",
termos por este criado, refere-se a uma repetição de sequências do mito. Além disso, os
mitos possuem dimensão sincrônica e diacrônica.
Destacam-se ainda os estudos de Edgar Morin (1986). Este distingue dois
modos de conhecimento e de ação: o simbólico/mitológico/mágico e o
empírico/técnico/racional. Para ele, existem complementaridade e
possibilidade de coexistência e interação entre esses modelos, pois
"toda a renúncia ao conhecimento empírico/técnico/racional conduziria
os humanos à morte e toda a renúncia às suas crenças fundamentais
desintegraria a sua sociedade" (MORIN, 1986, p. 144).
Para Morin, o mito é inseparável da linguagem. O mito
também não se trata de uma mentira, pois é verdadeiro
para quem vive e é uma forma espontânea do homem
situar-se no mundo, elevá-lo a outra esfera, ao
transcendente, oferecendo valores absolutos e paradigmas
às atividades humanas (MORIN, 1986, p. 150)
Mircea Eliade (1963/2000) constata que "o mito é uma realidade cultural
complexa, que pode ser abordada e interpretada em perspectivas
múltiplas e complementares ... Conta uma história sagrada, relata um
acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso
dos 'começos'" (p. 12). O tempo do mito é o tempo fabuloso, o tempo
passado, mas sempre presente, indissociável do nosso tempo.
O foco do mito seriam a origem das coisas. Mesmo os mitos
escatológicos dirigiam sua atenção não ao fim em si, mas para
um novo começo. Sendo assim, a relação da Psicanálise com a
mitologia está no fato de ambos se interessarem pelas origens
e pelos primórdios do humano.
O mito tem valor significante, pois é "alguma coisa que, em si, não significa nada, mas carrega,
certamente, toda a ordem de significação" (LACAN, 1956-1957/1995, p. 261). O mito exige interpretação
e constante ressignificação, a partir dos elementos que lhes compõe, permitindo que o sentido possa
ser outro. Como estrutura simbólica, o mito permite vestir o real com o imaginário (CARREIRA, 2001).