O poeta é um fingidor./ Finge tão
completamente/ Que chega a
fingir que é dor/ A dor que
deveras sente./ E os que lêem o
que escreve,/ Na dor lida sentem
bem,/ Não as duas que ele teve,/
Mas só a que eles não têm./ E
assim nas calhas de roda/ Gira, a
entreter a razão,/ Esse comboio
de corda/ Que se chama coração.
o coração é símbolo do
sentimento/sensibilidade, as calhas da
roda são o destino. Os sentimentos são a
base para a criação de novos poemas (daí
o "entrenter a razão")
Coração- onde nascem sensações
evocadas pela memória
trabalhadas pela imaginação e pela razão
A dor que os leitores
sentem é um reflexo das
dores que estão no poema,
mas não são a dor que o
poeta sentiu nem a dor que
o poeta intelectualizou e
colocou no poema
O poeta nunca escreve no momento em que sente,
porque nesse momento o sentimento ainda não existe.
Um sentimento só existe intelectualmente quando é
recordado.
Consiste na transformação intelectual do pensamento, ou seja,
o poeta finge completamente a dor. Na perspectiva de Fernando
pessoa, existem três tipos de emoções que estão por detrás da
poesia: as “emoções vividas” mas já passadas, visto que a
composição de um poema deve ser feita não no momento da
emoção, mas no momento da sua recordação; as emoções que
ficam “presentes na recordação”, que são repetidas através de
um processo de transformação pelo intelecto; e por fim as
“emoções falsas”, não vividas mas sim imaginadas. Se nos
questionarmos acerca das emoções do leitor, podemos obter a
seguinte conclusão: estas emoções não são as vividas pelo
poeta, nem aquelas que exprimiu artisticamente. São apenas
emoções reflectidas pelo poema, que provocam um estado de
alma que não se define na totalidade. Logo, podemos concluir
que toda a emoção que é verdadeira é transformada na
inteligência, pois não se dá nela.
Para uma emoção ser verdadeira, tem de se dar na inteligência
e isto, segundo Pessoa, não se verifica, pois as emoções são
sentidas primeiro pelo coração. Assim, a teoria do fingimento
poético resume-se na capacidade que o poeta tem de transformar
com o intelecto, a matéria em poema e este funciona como o
produto das emoções, intelectualizadas pelo sujeito poético.
Dor de pensar
Gato que brincas na rua/
Como se fosse na cama,/
Invejo a sorte que é tua/
Porque nem sorte se
chama./ Bom servo das leis
fatais/ Que regem pedras e
gentes,/ Que tens instintos
gerais/ E sentes só o que
sentes./ És feliz porque és
assim,/ Todo o nada que és
é teu./ Eu vejo-me e estou
sem mim,/ Conheço-me e
não sou eu.
Fernando Pessoa vive em constante
conflito interior. Tendo consciência de
que é um homem racional de mais, ele
deseja arduamente pensar menos, ser
mais inconsciente, aproveitar a vida
sem questionar. Mas, como na
realidade tem uma necessidade
permanente de se questionar, de
pensar, de intelectualizar toda e
qualquer situação, ele sente-se
frustrado.
Ela canta, pobre ceifeira,/ Julgando-se
feliz talvez;/ Canta, e ceifa, e a sua voz,
cheia/ De alegre e anônima viuvez,/ Ondula
como um canto de ave/ No ar limpo como
um limiar,/ E há curvas no enredo suave/
Do som que ela tem a cantar./ Ouvi-la
alegra e entristece,/ Na sua voz há o
campo e a lida,/ E canta como se tivesse/
Mais razões pra cantar que a vida./ Ah,
canta, canta sem razão!/ O que em mim
sente ‘stá pensando./ Derrama no meu
coração a tua incerta voz ondeando!/ Ah,
poder ser tu, sendo eu!/ Ter a tua alegre
inconsciência,/ E a consciência disso! Ó
céu!/ Ó campo! Ó canção! A ciência/ Pesa
tanto e a vida é tão breve!/ Entrai por mim
dentro!/ Tornai Minha alma a vossa sombra
leve!/ Depois, levando-me, passai!
Ele nunca conseguirá ter reacções de
abstracção para com o pensamento porque a
insatistafação e a dúvida acerca da importância
da racionalidade são constantes. O que ele
deseja é ser inconsciente, tendo consciência
disso. Como isso é muito inconcebível, cada
vez a dor de pensar é maior.
Nostalgia da Infância
Sente uma grande saudade pela infância
irremediavelmente perdida pois esta remete para o
tempo em que era feliz inocentemente sem saber que o
era, porque ainda não se tinha procurado e, por isso,
não se tinha fragmentado. Assim essa criança que foi é
agora símbolo da inconsciência, do sonho e da
felicidade longínqua como a pobre ceifeira que canta ou
o gato que brinca na rua, cujas inconscientes
felicidades o poeta inveja porque já não consegue
senti-la sem pensar nela e, por isso, deixa de a sentir
na totalidade.
A infância é vista como um
paraíso perdido, um tempo de
inconsciência e de felicidade plena
Não sei, ama, onde era,/ Nunca o
saberei.../ Sei que era Primavera/ E o
jardim do rei.../ (Filha, quem o
soubera!...)./ Que azul tão azul tinha/
Ali o azul do céu!/ Se eu não era a
rainha,/ Porque era tudo meu?/ (Filha,
quem o adivinha?)./ E o jardim tinha
flores/ De que não me sei lembrar.../
Flores de tantas cores.../ Penso e
fico a chorar.../ (Filha, os sonhos são
dores...)./ Qualquer dia viria/
Qualquer coisa a fazer/ Toda aquela
alegria/ Mais alegria nascer/ (Filha, o
resto é morrer...)./ Conta-me contos,
ama.../ Todos os contos são/ Esse
dia, e jardim e a dama/ Que eu fui
nessa solidão...