Ciclo III - Texto base - O povo brasileiro - A formação e o sentido do Brasil - Darcy Ribeiro

Description

Formação Sindicato e Cidadania Note on Ciclo III - Texto base - O povo brasileiro - A formação e o sentido do Brasil - Darcy Ribeiro, created by Célia Cappucci on 04/08/2016.
Célia Cappucci
Note by Célia Cappucci, updated more than 1 year ago
Célia Cappucci
Created by Célia Cappucci over 8 years ago
5
0

Resource summary

Page 1

Texto base - O povo brasileiro - A formação e o sentido do Brasil - Darcy Ribeiro

O POVO BRASILEIRO A FORMAÇÃO E O SENTIDO DO BRASIL DarcyRibeiro OPovoBrasileiro AformaçãoeosentidodoBrasil DarcyRibeiro CompanhiadasLetras–1995 SãoPaulo Segundaediçãohttp://www.usp.br/cje/anexos/pierre/ribeiro_darcy_povo_brasileiro_formacao_e_o_sentido_do_brasil.pdfMATRIZESÉTNICAS AILHABRASIL A costa atlântica, ao longo dos milênios, foi percorrida e ocupada por inumeráveis povos indígenas. Disputando os melhores nichos ecológicos, eles sealojavam,desalojavame realojavam,incessantemente.Nosúltimos séculos, porém, índios de fala tupi, bons guerreiros, se instalaram, dominadores,naimensidadedaárea,tantoàbeira‐mar,aolongodetodaa costaatlânticaepeloAmazonasacima,comosubindopelosriosprincipais, comooParaguai,oGuaporé,oTapajós,atésuasnascentes. Configuraram, desse modo, a ilha Brasil, de que falava o velho Jaime Cortesão( 1958), prefigurando, no chão da América do Sul, o que viria a ser nosso país. Não era, obviamente, uma nação, porque eles não se sabiam tantos nemtãodominadores.Eram,tão‐só,umamiríadedepovostribais,falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciarelogosedesconheciamesehostilizavam. Se a história, acaso, desse a esses povos Tupi uns séculos mais de liberdade e autonomia, é possível que alguns deles se sobrepusessem aos outros, criando chefaturas sobre territórios cada vez mais amplos e forçando os povos que neles viviam a servi‐los, os uniformizando culturalmente e desencadeando, assim, um processo oposto ao de expansãopordiferenciação. 30 Nada disso sucedeu. O que aconteceu, e mudou total e radicalmente seu destino, foi a introdução no seu mundo de um protagonista novo, o europeu. Embora minúsculo, o grupelho recém‐chegado de além‐mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas. Principalmentecomoumainfecçãomortalsobreapopulaçãopreexistente, debilitando‐aatéamorte. Esse conflito se dá em todos os níveis, predominantemente no biótico, como uma guerra bacteriológica travada pelas pestes que o branco trazia no corpo e eram mortais para as populações indenes. No ecológico, pela disputa do território, de suas matas e riquezas para outros usos. No econômico e social, pela escravização do índio, pela mercantilização das relações de produção, que articulou os novos mundos ao velho mundo europeucomoprovedoresdegênerosexóticos,cativoseouros. No planoétnico‐cultural,essa transfiguração se dá pelagestação de uma etnia nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos de África, e os europeusaquiquerenciados.Eraobrasileiroquesurgia,construídocomos tijolosdessasmatrizesàmedidaqueelasiamsendodesfeitas. Reconstituiresseprocesso,entendê‐loemtodaasuacomplexidade,émeu objetivo neste livro. Parece impossível, reconheço. Impossível porque só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor. Ele é quem nos faladesuasfaçanhas.Éele,também,quemrelataoquesucedeuaosíndios eaosnegros,raramentelhesdandoapalavraderegistrodesuaspróprias falas. O que a documentação copiosíssima nos conta é a versão do dominador. Lendo‐a criticamente, é que me esforçarei para alcançar a necessáriacompreensãodessadesventuradaaventura. 31 Tarefarelevantíssima,emdoisplanos.Nohistórico,pelareconstituiçãoda linhasingulareúnicadesucessosatravésdosquaischegamosaseroque somos, nós, os brasileiros. No antropológico, porque o processo geral de gestaçãodepovosquenosfez,documentadíssimoaqui,éomesmoquefez surgir em outras eras e circunstâncias muitos outros povos, como a romanização dos portugueses e dos franceses, por exemplo, de cujo processodefazimentosótemosnotíciasescassaseduvidosas. AMATRIZTUPI Os grupos indígenas encontrados no litoral pelo português eram principalmentetribosdetroncotupique,havendoseinstaladounsséculos antes, ainda estavam desalojando antigos ocupantes oriundos de outras matrizes culturais. Somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomeradodeváriasaldeiasdetrezentosa2milhabitantes(Fernandes 1949).Nãoera poucagente, porque Portugalàquelaépoca teriaamesma populaçãooupoucomais. Naescaladaevoluçãocultural,ospovosTupidavamosprimeirospassos da revolução agrícola, superando assim a condição paleolítica, tal como ocorrerapelaprimeiravez,há10milanos,comospovosdovelhomundo.É de assinalar que eles o faziam por um caminho próprio, juntamente com outrospovosdaflorestatropicalquehaviamdomesticadodiversasplantas, retirando‐asdacondiçãoselvagemparaademantimentodeseusroçados. Entre elas, a mandioca, o que constituiu uma façanha extraordinária, porquese tratavadeumaplantavenenosaaqualelesdeviam,nãoapenas cultivar, mas também tratar adequadamente para extrair‐lhe o ácido cianídrico, tornando‐acomestível.Éumaplantapreciosíssimaporquenão precisasercolhidaeestocada,mantendo‐sevivanaterrapormeses. 32 Além da mandioca, cultivavam o milho, a batata‐doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva‐mate, o guaraná, entre muitasoutrasplantas.Inclusivedezenasdeárvoresfrutíferas,comoocaju, o pequi etc. Faziam, para isso, grandes roçados na mata, derrubando as árvorescomseusmachadosdepedraelimpandooterrenocomqueimadas. Aagriculturalhesasseguravafarturaalimentardurantetodooanoeuma grande variedade de matérias‐primas, condimentos, venenos e estimulantes. Desse modo, superavam a situação de carência alimentar a queestãosujeitosospovospré‐agrícolas,dependentesdagenerosidadeda natureza tropical, que provê, com fartura, frutos, cocos e tubérculos durante uma parte do ano e, na outra, condena a população à penúria. Permaneciam, porém, dependentes do acaso para obter outros alimentos atravésdacaçaedapesca,tambémsujeitosaumaestacionalidademarcada por meses de enorme abundância e meses de escassez (Ribeiro 1970; Meggers1971). Daí a importância dos sítios privilegiados, onde a caça e a pesca abundantesgarantiamcommaiorregularidadeasobrevivênciadogrupoe permitiam manter aldeamentos maiores. Em certos locais especialmente ricos, tanto na costa marítima quanto nos vales mais fecundos, esses aldeamentos excepcionais chegavam a alcançar 3 mil pessoas. Eram, todavia, conglomerados pré‐urbanos (aldeias agrícolas indiferenciadas), porque todososmoradoresestavamcompelidosàproduçãodealimentos, só liberando dela, excepcionalmente, alguns líderes religiosos (pajés e caraibas)eunspoucoschefesguerreiros(tuxáuas). Apesardaunidadelingüísticaeculturalquepermiteclassificá‐losnumasó macroetnia, oposta globalmente aos outros povos designados pelos portugueses como tapuias (ou inimigos), os índios do tronco tupi não puderamjamaisunificar‐senumaorganizaçãopolíticaquelhespermitisse atuarconjugadamente. 33 Suaprópriacondiçãoevolutivadepovosdeníveltribalfaziacomquecada unidadeétnica,aocrescer,sedividisseemnovasentidadesautônomasque, afastando‐se umas das outras, iam se tornando reciprocamente mais diferenciadasehostis. Mesmo em face do novo inimigo todo poderoso, vindo de além‐mar, quandoseestabeleceuoconflitoaberto,osTupisóconseguiramestruturar efêmeras confederações regionais que logo desapareceram. A mais importantedelas,conhecidacomoConfederaçãodosTamoios,foiensejada pelaaliançacomos francesesinstaladosnabaíadeGuanabara.Reuniu,de 1563 a 1567, os Tupinambá do Rio de Janeiro e os Carijó do planalto paulista‐ajudadospelosGoitacáepelosAimorédaSerradoMar,queeram delínguajê‐ para fazerem aguerra aos portugueses e aos outrosgrupos indígenasqueosapoiavam.NessaguerrainverossímildaReformaversusa Contra‐Reforma, dos calvinistas contra os jesuítas, em que tanto os franceses como os portugueses combatiam com exércitos indígenas de milhares de guerreiros ‐ 4557, segundo Léry; 12 mil nos dois lados na batalhafinaldoRiodeJaneiro,em1567,segundocálculosdeCarlosA.Dias (1981)‐, jogava‐se o destino da colonização. E eles nem sabiam por que lutavam, simplesmente eram atiçados pelos europeus, explorando sua agressividade recíproca. Os Tamoio venceram diversas batalhas, destruíramacapitaniadoEspíritoSantoeameaçaramseriamenteadeSão Paulo. Mas foram, afinal, vencidos pelas tropas indígenas aliciadas pelos jesuítas. Nessas guerras, como nas anteriores ‐ por exemplo, a de Paraguaçu no Recôncavo, em 1559 ‐ e nas que se seguiram até a consolidação da conquistaportuguesa‐comoascampanhasdeextermíniodosPotiguarado RioGrandedoNorte,em1599,e,noséculoseguinte,aGuerradosBárbaros easguerrasnaAmazônia‐,osíndiosjamaisestabeleceramumapazestável comoinvasor,exigindodeleumesforçocontinuado,aolongodedécadas, paradominarcadaregião. 34 Essa resistência se explica pela própria singeleza de sua estrutura social igualitária que, não contando com um estamento superior que pudesse estabelecer uma paz válida, nem com camadasinferiores condicionadas à subordinação, lhes impossibilitava organizarem‐se como um Estado, ao mesmo tempo que tornava impraticável sua dominação. Depois de cada refregacontraoutrosindígenasoucontraoinvasoreuropeu,sevencedores, tomavam prisioneiros para os cerimoniais de antropofagia e partiam; se vencidos, procuravam escapar, a fim de concentrar forças para novos ataques.Quandomuitodizimadosejáincapazesdeagrediroudedefender‐ se,ossobreviventesfugiamparaalémdasfronteirasdacivilização.Issoéo queestáacontecendo hoje, quinhentosanos depois, com os Yanomami da fronteiranortedoBrasil. Cada núcleo tupi vivia em guerra permanente contra as demais tribos alojadas em sua área de expansão e, até mesmo, contra seus vizinhos da mesma matriz cultural (Fernandes 1952). No primeiro caso, os conflitos eramcausadospordisputaspelossítiosmaisapropriadosàlavoura,àcaça eàpesca.Nosegundo,erammovidosporumaanimosidadeculturalmente condicionada: uma forma deinteraçãointertribal que se efetuava através de expedições guerreiras, visando a captura de prisioneiros para a antropofagiaritual. O caráter cultural e co‐participado dessas cerimônias tornava quase imperativo capturar os guerreiros que seriam sacrificados dentro do própriogrupo tupi.Somenteestes‐ por compartilhar domesmo conjunto devalores‐desempenhavamàperfeiçãoopapelquelheseraprescrito:de guerreiro altivo, que dialogava soberbamente com seu matador e com aqueles que iriam devorá‐lo. Comprova essa dinâmica o texto de Hans Staden,quetrêsvezesfoilevadoacerimôniasdeantropofagiaetrêsvezes os índios se recusaram a comê‐lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência.Nãosecomiaumcovarde. 35 A antropofagia era também uma expressão do atraso relativo dos povos Tupi.Comiamseusprisioneirosdeguerraporque,comarudimentaridade de seu sistema produtivo, um cativo rendia poucomais do que consumia, não existindo, portanto, incentivos para integrá‐lo à comunidade como escravo. Muitos outros povos indígenas tiveram papel na formação do povo brasileiro.Algunsdelescomoescravospreferenciais,porsuafamiliaridade com a tecnologia dos paulistas antigos, como os Paresi. Outros, como inimigos irreconciliáveis, imprestáveis para escravos porque seu sistema adaptativo contrastava demais com o dos povos Tupi. É o caso, por exemplo,dosBororo,dosXavante,dosKayapó,dosKaingangedosTapuia emgeral. Ocontrastemaiorseregistrouentreaquelepovomameluco,quese fazia brasileiro, e um contendor realmente capaz de ameaçá‐lo, que eram os Guaikuru,tambémchamadosíndioscavaleiros.Adotandoocavalo,quepara osoutrosíndioseraapenasumacaçanovaquesemultiplicavanoscampos, eles se reestruturaram como chefaturas pastoris que enfrentaram vigorosamenteoinvasor,infringindo‐lhederrotaseperdasquechegarama ameaçaraexpansãoeuropéia. Umdoscronistasdaexpansãocivilizatóriasobreseus territóriosnosdiz, claramente,que"poucofaltouparaqueexterminassemtodososespanhóis doParaguai"(FélixdeAzaraapudHolanda1986:70).FranciscoRodrigues do Prado (1839:I, 15), membro da Comissão de Limites da América hispânicaedaportuguesa,avaliouem4milonúmerodepaulistasmortos porelesaolongodasviasdecomunicaçãocomCuiabá. Esses índios Guaikuru estavam como que propensos para essa via evolutiva. Primeiro, por sua própria constituição física, que maravilhou a quantoseuropeusosobservaramnaplenitudedoseudesempenho.Elessão descritos como guerreiros agigantados, muitíssimo bem proporcionados, que, nos diz, "duvido que haja na Europa povo algum que, em tantos e tantos,possa 36 comparar‐secomestesbárbaros"(FélixdeAzaraapudHolanda1986:78). Sanches Labrador (1910:I, 146), o jesuíta espanhol que os doutrinou por longos anos, falando embora de índios encolhidos debaixo de peles para fugir das frialdades impiedosas que às vezes caem sobre aquelas regiões, nosdizque"nãoháimagemmaisexpressivadeumHérculespintado". Ainda mais explicativo do seu desempenho é o fato de que, antes da chegadadoeuropeu,osGuaikurujáimpunhamsuasupremaciasobrepovos agrícolas,forçando‐osasuprir‐lhesdealimentosedeservos.Testemunhos datados dos primeiros anos do século XVI nos falam deles como povos sagazesquedominavamosGuaná,impondo‐lhesrelaçõesqueelecompara com o senhorio dos tártaros sobre seus vassalos. Os Mbayá‐Guaikuru se tornaram aindamais perigosos quando se aliaram aos Payaguá‐Guaikuru, índiosdecorsoquelutavamcomseus remos transformadosemlançasde duaspontas,quedizimaramváriasmonçõespaulistasquedesciamdeVila Bela,noaltoMatoGrosso,carregadasdeouro. SérgioBuarque deHolanda (1986:82) coletou dados de fontes primárias queavaliamdedeza vinteeatésessentaecemarrobasdeouro roubado aos paulistas para o escambo com os assuncenos, que assim teriam amealhadograndesfortunas. A propensão de Herrenvolk dos Guaikuru, armada com o poderio da cavalaria, desabrochou, permitindo sua ascensão da tribalidade indiferenciada às chefaturas pastoris, capacitadas a impor cativeiro aos servosqueincorporavamaseuscacicadosesuseraniaanumerosas tribos agrícolas. Para os iberos, que disputavam o domínio daqueles vastíssimos sertões ricosemouro,nadapodiasermelhorquealcançaraaliançadosGuaikuru para lançá‐los contra seu adversário. Isso, ambos, a cada tempo, o conseguiram. Mais longamente os espanhóis, duplamente excitados para essaaliança,porque,noseucaso,àcompetiçãosesomavaacobiça.Équeos Guaikuru 37 aprenderamrapidamenteapraticaroescambo,preandoescravosnegrose também senhores e senhoras europeus e muitíssimos mamelucos, tantos quantospudessem,paravenderemAssunção. Ao descrever essas alianças, Sérgio Buarque se eriça: "É o confronto de duas humanidades diversas, tão heterogêneas, tão verdadeiramente ignorantes,agorasim,umadaoutra,quenãodeixadeimpor‐seentreelas umaintolerânciamortal"(1986:59). Os Guaikuru estiveram, alternativamente, aliados com espanhóis e com lusitanos, sem guardar fidelidade a nenhum deles, mesmo porque não aceitaramjamaisnenhumadominação.Aliciadosedoutrinadosporjesuítas, cujamissãoacolheramemseustoldos,selançaramcontraosportugueses, atacando Cuiabá e Vila Bela (Labrador 1910). Expulsos os jesuítas, se voltarammaisdecididamentecontraoscastelhanos,atacandoascercanias deAssunção. Os Mbayá acabaram se fixando no sul de Mato Grosso que, em grande parte graças a essa aliança, ficou com o Brasil; e os Payaguá, nas vizinhanças de Assunção. A Guerra do Paraguai deu, a uns e outros, suas últimaschancesdeglória,assaltandoesaqueandopopulaçõesparaguaiase brasileiras.Terminaram,porfim,despojadosdeseusrebanhosdegadoede suas cavalarias, debilitados pelas pestes brancas e escorchados. Sem embargo,guardaramatéofim,eaindaguardam,suasoberba,naformade uma identificação orgulhosa consigo mesmos que os contrasta, vigorosamente, com todos os demais índios, como pude testemunhar nos anosemqueconvivinassuasaldeias,porvoltade1947. ALUSITANIDADE Aocontráriodospovosqueaquiencontraram,todoselesestruturadosem tribosautônomas,autárquicasenãoestratificadasemclasses,oenxamede invasoreseraapresençalocalavançadadeumavastaevetustacivilização urbanaeclassista. 38 Seu centro de decisãoestava naslonguras de Lisboa, dotada sua Corte de muitos serviços, sobretudo do poderoso Conselho Ultramarino, que tudo previa,planificava,ordenava,provia. Outro coordenador poderosíssimo era a Igreja católica, com seu braço repressivo, o Santo Ofício. Ouvindo denúncias e calúnias na busca de heresias e bestialidades, julgava, condenava, encarcerava e até queimava vivos os mais ousados. Nem aí, na vastidão desses imensos poderios, terminavaaestruturacivilizatóriaqueseimpunhasobreoBrasilnascente. Ela era um conglomerado interativo de entidades equivalentes em ativa competição,àsvezescruentasumascontraasoutras. No conjunto, destacava‐se, primeiro, uma ausência poderosíssima, a da Espanha, objeto de especial atenção como ameaça sombria e permanente deabsorçãoeliquidaçãodalusitanidade.Vinham,depois,comoentidades ativamente contrapostas a Portugal na disputa por seus novosmundos, a Inglaterra e a Holanda. Sobre todas elas pairava Roma, do Vaticano, a da Santa Sé, como centro de legitimação e de sacralização de qualquer empreendimentomundialecentrodaféregidaemseunomeporumvasto clero assentado em inumeráveis igrejas e conventos. Seguia‐se o poderosíssimoaparatodeestadosmercantisarmados,hostisentresi,male mal contidos pela regência papal, tão acatada por uns como atacada por outros. Esse complexo do poderio português vinha sendo ativado, nas últimas décadas, pelas energias transformadoras da revolução mercantil, fundada especialmentenanova tecnologia,concentradananauoceânica,comsuas novas velas de mar alto, seu leme fixo, sua bússola, seu astrolábio e, sobretudo,seuconjuntodecanhõesdeguerra.Comelasurgiamsolidáriasa tipografla de Gutemberg, duplicando a disponibilidade de livros, além do ferrofundido,generalizandoutensílioseapetrechosdeguerra. Suasciênciaseramumesforçodeconcatenarcomumsaberaexperiência queseiaacumulando. 39 E, sobretudo, fazer praticar esse conhecimento para descobrir qualquer terra achável, a fim de a todo omundo estruturar nummundo só, regido pela Europa. Tudo isso com o fim de carrear para lá toda a riqueza saqueávele,depois, todooprodutodacapacidadedeproduçãodospovos conscritos. Eraahumanidademesmaqueentravanoutrainstânciadesuaexistência, na qual se extinguiriam milhares de povos, com suas línguas e culturas própriasesingulares,paradarnascimentoàsmacroetniasmaioresemais abrangentesquejamaisseviu. Omotordessaexpansãoeraoprocessocivilizatórioquedeunascimentoa doisEstadosnacionais:PortugaleEspanha,queacabavamdeconstituir‐se, superandoofracionamentofeudalquesucederaàdecadênciadosromanos. Nãoeraassim,naturalmente,queelesseviam,osgestoresdessaexpansão. Eles se davam ao luxo de propor‐se motivações mais nobres que as mercantis,definindo‐secomo osexpansoresda cristandadecatólica sobre os povos existentes e por existir no além‐mar. Pretendiam refazer o orbe emmissãosalvadora,cumprindoatarefasupremadohomembranco,para isso destinado por Deus: juntar todos os homens numa só cristandade, lamentavelmentedivididaemduascaras,acatólicaeaprotestante. Antes mesmo do achamento do Brasil, o Vaticano estabelece as normas básicasdeaçãocolonizadora,ao regulamentar,comosolhosaindapostos na África, as novas cruzadas que não se lançavam contra hereges adoradoresdeoutroDeus,mascontrapagãoseinocentes.Éoqueselêna bulaRomanusPontifex,de8dejaneirode1454,dopapaNicolauV: "Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto filho infante D. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nome gloriosíssimodeDeus,reduzindoàsuafénãosóossarracenos,inimigosdela, comotambémquaisqueroutrosinfiéis. 40 Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foramtrazidosaoreino,oqueesperamosprogridaatéaconversãodopovo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, concedemosao dito reiAfonsoa plenaelivre faculdade,entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos pertencerdedireitoinperpetuumaosmesmosD.Afonsoeseussucessores,e ao infante. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir essas determinações,sejaexcomungado[...](inBaião1939:36‐7)." Maistarde,sempreprevidente,oVaticanodispõenabulaInterCoetera,de 4demaiode1493‐quasenasmesmaspalavrasqueabulaanterior‐,que também o Novo Mundo era legitimamente possuível por Espanha e Portugal,eseuspovostambémescravizáveisporquemossubjugasse: "[...]pornossameraliberalidade,edeciênciacerta,eemrazãodaplenitude do poder Apostólico, todas ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio‐Dia, fazendo e construindo uma linha desde o pólo Ártico [...] quer sejam terras firmes e ilhas encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção a qualquer outra parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas que vulgarmente são chamadas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para o Ocidentee oMeio‐Dia [...]AVósea vossos herdeirose sucessores (reis de Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro,assim como do vicariado de Jesus Cristo,a qualexercemos na terra, para sempre, no teor das presentes, vô‐las doamos, concedemos e entregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas, direitos,jurisdiçõesetodasaspertenças.Eavóseaossobreditosherdeirose sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição. [...] sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas,eosmoradoresehabitantesdelas,ereduzi‐losàFéCatólica [...] (inMacedoSoares1939:25‐8)" 41 É preciso reconhecer que essa é, ainda hoje, a lei vigente no Brasil. É o fundamento sobre o qual se dispõe, por exceção, a dação de um pequeno território a um povo indígena, ou, também por exceção, a declaração episódicaetemporáriadequeagentedetaltribonãoeraescravizável.Éo fundamento,ainda, do direito dolatifundiárioà terra quelhe foi uma vez outorgada,bemcomoocomandodetodoopovocomoumameraforçade trabalho, sem destino próprio, cuja funçãoera servirao senhorio oriundo daquelasbulas.

Show full summary Hide full summary

Similar

Spanish Vocabulary- Beginner
PatrickNoonan
Resumo global da matéria de Biologia e Geologia (10.º e 11.º anos)
miminoma
Themes in Pride and Prejudice
laura_botia
Business Studies Unit 1
kathrynchristie
Chemistry (C1)
Phobae-Cat Doobi
Sociology- Key Concepts
Becky Walker
8 Citações Motivacionais para Estudantes
miminoma
Continents & Oceans
Thomas Yoachim
Periodic table - full deck of element symbols
Derek Cumberbatch
DEV I Part II
d owen
Muscles- Physiology MCQs PMU- 2nd Year
Med Student