Democracia e religião no pensamento
de Jürgen Habermas
O pensamento de Jürgen Habermas sobre a questão religiosa não permaneceu idêntico a si mesmo
ao longo do tempo. Ele percorreu três grandes etapas, cada uma delas decorrente de um paradigma
específico.
1. A superação da separação secularista
A palavra “secularist”, traduzida nos textos franceses por “laïciste” [laico, leigo], é muitas vezes usada
pelo último Habermas. Nos seus textos, essa palavra designa um esquema específico de organização
do mundo: aquele no qual a existência coletiva se organiza, longe de qualquer influência do religioso
(considerado como “resíduo 63 Democracia e religião no pensamento de Jürgen Habermas Numen:
revista de estudos e pesquisa da religião, baseando-se
apenas no fundamento do intercâmbio das razões. Afirmou-se que Habermas esteve próximo dessa
concepção do funcionamento político durante muito tempo. Hoje, isso não ocorre mais: nos seus
textos recentes, ele faz questão de lembrar que “o pensamento esclarecido pela razão nua”
demonstrou “todos os seus limites”, e que convém superá-lo apoiando-se doravante sobre a base do
religioso.
2. A fragilidade da razão secular
Os textos de Adorno e de Horkheimer, especialmente “La dialectique de la raison” [A dialética da razão],
ainda modelam o discurso habermasiano destes últimos anos. Por terem dissociado os homens das
autoridades que os dominavam até então e por lhes terem permitido inventar, por si mesmos, as
normas de sua existência, as Luzes constituem certamente um momento decisivo na história da
liberdade. Mas, paralelamente, ao fechar cada um em si mesmo, elas arrastaram o mundo para uma
lógica da desmedida, na qual se desvaneceram as promessas de emancipação que faziam. O mundo
moderno, tal como se constitui com Kant, apresenta, aos olhos de Habermas, uma dupla qualidade2
3. A redescoberta da palavra religiosa
Como reconstruir “um mundo de relações interpessoais legítimas”? Habermas não acredita mais ser
possível apoiar-se nos “deuses anônimos da metafísica pós-hegeliana”, isto é, no modelo marxista de
inteligência e de transformação do mundo (Habermas, 2004, p. 15). Aliás, ele já havia assinalado esta
posição nos anos 1960, no momento em que, conquistado pelo linguistic turn, descobre a ética da
discussão. O religioso ao qual ele se refere é o religioso “verdadeiro”, aquele que, como ele mesmo diz
de maneira weberiana, é estruturado em torno de uma relação com o sobrenatural. Ele pensa nas
religiões da idade axial (Karl Jaspers), o judaísmo e o cristianismo principalmente, e em posição bem
menor, o islã. “Em relação a essas tradições religiosas, a democracia tem razões para estar pronta a
aprender” (Ibid.). Essa decisão de legitimar o religioso se justifica por duas séries de motivos.
4. A recusa do englobamento metafísico
Joseph Ratzinger opõe ao princípio de Grotius Etsi Deus non daretur7 à cláusula exatamente inversa
Sicuti Deus daretur: “Fazer como se Deus existisse”. É um discurso de precaução: diante do
pensamento moderno que entende situar-se apenas sob o governo da razão natural, é preciso
reencontrar, para evitar as falhas da razão, uma norma transcendente de regulação. Habermas
pretende reconhecer o religioso, mas não para colocá-lo em situação de governar o político. Essa
intenção se percebe em dois níveis. Por um lado, no nível axiológico: nosso autor lembra que a
sociedade não poderia impor aos seus membros uma norma única de comportamento. Por outro lado,
no nível institucional: ele entende colocar o Estado fora de qualquer submissão às comunidades de
crença.
5. Recusar a homogeneidade cultural
Habermas entra em disputa sobre esse ponto com os autores conservadores que, em dado momento,
denunciaram a democracia liberal. Cita, particularmente, Schmitt, Heidegger e o jurista alemão
Böckenförde, próximo de João Paulo II. Este último expressou a sua tese notadamente em Droit, Etat et
Liberté [Direito, Estado e Liberdade]. Böckenförde declara que a democracia, por não 6 Nesse sentido,
além de Paolo Flores d’Arcais, Nalin, 2003. 7 ”Fazer como se Deus não existisse”. 70 Philippe Portier
Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, ser constituída em
torno de um “laço unificador constituindo o preâmbulo à liberdade”, está destinada a perder-se em
uma lógica anômica. É, pois importante, explica ele, reenraizar a ética comum da sociedade em
tradições éticas ou em “concepções religiosas que impliquem obrigações coletivas”.
6. Preservar a separação institucional
Como articular neutralidade do político e presença do religioso? Essa pergunta acarreta uma reflexão
institucional. Habermas não quer transigir com a ideia de separação das duas esferas. Essa é uma das
grandes contribuições da democracia constitucional, explica ele. Não se poderia permitir às Igrejas que
penetrassem e, muito menos, que englobassem a esfera do Estado. Nosso autor constrói esse
esquema de separação, situando-se em um duplo terreno, a saber, o das regras jurídicas e o das regras
de linguagem.