Context
A Neurociência Cognitiva
Encerrando esse curso introdutório, vamos falar um pouco sobre como a neurociência vem ajudando a compreender melhor esse mundo da memória, da mente e da aprendizagem. Como estudado até aqui, sabemos que não há um lugar específico na qual a memória é armazenada, sendo a memória em verdade diferentes conjuntos cognitivos, tendo cada área do cérebro humano a capacidade de armazenar ou gerenciar predominantemente certas modalidedes ou em conjunto formar modalidades mais complexa.
O principal objetivo desse ramo, chamado de neurociência cognitiva, é justamente compreender o comportamento de circuitos neurais em relação aos atos mentais decorrentes do pensamento humano.
Um dos primeiros passos nesse sentido foi dado por Wilder Graves Penfield (1891 - 1976) , sendo considerado um dos maiores neurocirurgiões do século XX, um dos maiores pioneiros no tratamento cirúrgico da epilepsia e da identificação das áreas somatossensoriais cerebrais em humanos.
Penfield utilizada como técnica no tratamento da epilepsia grave a destruição de pequenos grupos de neurônios no qual se acreditava estar localizado os focos dos ataques epiléticos. Método que passou a ser conhecido por"procedimento de Montreal". Em busca de uma identificação mais precisa das regiões que necessitavam de ablação cirúrgica e com isso, a redução de danos colaterais decorrentes da preservação em áreas cerebrais sadias, Penfield estimulada diferentes partes do cérebro com impulsos elétricos, mantendo os pacientes conscientes apenas sob anestesia local. Tal procedimento permitia observar a relação entre as áreas estimuladas e o efeito fisiológico provocado. Penfield descobriu que, ao estimular o córtex temporal com impulsos elétricos, os pacientes relatavam que podiam relembrar de momentos e emoções vividas, com memórias vislumbrantes, sensações de odores do passado, ou ainda imagens que vinham mesmo da infância.
Desta forma, Penfiled além de conseguir localizar as zonas cerebrais responsáveis pela epilepsia, permitiu a ele e seus colaboradores, como Herbert Jasper, elaborarem mapas dos córtices sensoriais e motores do cérebro, assim como as suas representações aos diversos membros e órgãos do corpo. Tais mapas continuam a quase na sua forma quase original. Esse mapa do cérebro, hoje retratado como um desenho chamado homúnculo motor ou cortical, tem como características ser um desenho de acordo com a quantidade de espaço que determinadas atividades ocupam no cérebro humano.
Essas descobertas de Penfield impulsionavam o estudo e melhor entendimento de fatos importantíssimos e curiosos (se não tristes ou mesmo bizarros) sobre o comportamento humano. Talvez um dos mais emblemáticos seja o de Phineas Gage (1823 - 1860). Aos 25 anos decorrente de uma explosão acidental com pólvora, Gage teve uma barra de ferro atravessada da base do lado esquerdo da sua face ao topo da cabeça. Apesar de recobrar a consciência e, em pouco tempo, voltou a andar e a falar como antes, algo tido como quase impossível, seu comportamento havia mudado significativamente.
De um operário amigável, solidário, com postura austera e respeitosa, Gage passou a se comportar como um homem caprichoso, arrogante e impaciente, birrento de linguajar baixo. Chegou a tornar-se atração, de circo, mostrando para o público as marcas da ferida assim como o ferro que lhe atravessara a cabeça. Hoje o crânio e o bastão encontram-se na Warren Medical Museum, na Escola de Medicina de Harvard, em Boston, Estados Unidos.
Seu médico, doutor Harlow, solicitou a irmã de Gage que o corpo fosse exumado para que o seu crânio preservado. Através de imagens computadorizadas mostraram que a área afetada pelo bastão foi o córtex pré-frontal. Para maiores detalhes, ver o artigo Mapping Connectivity Damage in the Case of Phineas Gage , que pode ser acessado aqui.
Outros casos passaram a ser fundamentais também para o melhor entendimento da mente humana. Um outro muito conhecido é o do paciente "H.M." - O homem sem novas memórias.
H.M, iniciais de Henry Gustav Molaison (1926 - 2008), norte-americano, a partir dos 10 anos, Henry sofreu de episódios recorrentes de crises epilépticas focais, a princípio após um acidente de bicicleta sofrido por ele aos 7 ou 9 anos. Aos 16 anos, suas crises passaram a ser mais frequentes e se generalizaram, manifestando-se como crises tônico-clônicas. Sendo declarado incapacitado para trabalhar aos 27 anos, o neurocirugião William Scoville se ofereceu para fazer uma resecção encefálica no intuito de reduzir as crises de epilepsia. O foco epiléptico parecia advir bilateralmente dos lobos temporais mediais, passando então pela cirurgia bilateral do lobo temporal medial, incluindo hipocampo, córtex entorrinal, córtex perirrinal, córtex parahipocampal e amigdala. A extensão extraordinária déficit de memória observado em pacientes como Molaison parece ser devido a lesões conjuntas de hipocampo e áreas corticais adjacentes (córtex perirrinal, giro para-hipocampal.
Contudo, apesar da melhora em relação as crises epilépticas, Molaison desenvolveu uma amnésia anterógrada grave não conseguindo mais consolidar nenhuma memória de fatos novos e um pequeno comprometimento de memórias passadas, a amnésia retrógrada. Tais pacientes tornam-se escravos do passado, sendo capazes de lembrar de tudo o que se passou antes da lesão ocorrer, mas não conseguem mais armazenar nada de novo por um período maior de tempo. O caso de Molaison foi publicado em 1957, com o título de LOSS OF RECENT MEMORY AFTER BILATERAL HIPPOCAMPAL LESIONS (acesse aqui o texto original) publicado pelo William Beecher Scoville e Brenda Milner, uma das maiores neurocientistas do século. Porém, após a cirurgia Molaison ainda era capaz de reter e evocar memória de procedimentos (tarefas motoras), de raciocinar e utilizar a linguagem fluentemente ou seja, a memória operacional e ainda de evocar memória consolidada antes da cirurgia.
Em 1958 Penfield e Milner descreveram vários casos de cirurgia de ablação unilateral do lobo temporal medial, que incluía a amígdala e boa parte do hipocampo. Destes pacientes, dois desenvolveram um quadro amnésico semelhante ao observado em H.M.. Estudos post-mortem mostraram que o hipocampo do hemisfério cerebral não operado se apresentava necrótico e provavelmente inoperante.
De fato, caso H.M forneceu importante informação para estudos futuros sobre a memória e regiões cerebrais, hoje ficando demonstrando a importância de regiões como o hipocampo (forma de cavalo marinho, grego hippos=cavalo, kampi=monstro) na consolidação da memória de curta duração em memória de longa duração. O hipocampo está envolvido na formação de memórias e na navegação espacial. É uma estrutura complexa e ocupa a porção medial do assoalho do corno temporal, formando um arco ao redor do mesencéfalo.
Estudos da neurociência vem mostrando que no lobo temporal medial, o hipocampo é uma região bem delimitada e filogeneticamente antiga no lobo temporal, sendo a região encefálica mais envolvida com as memórias declarativas, juntamente com o neocórtex temporal. Estudos de imagens do cérebro mostraram que quando uma pessoa lembra-se de algo, ocorre um aumento no metabolismo na região hipocampal, e consequentemente no fluxo sanguíneo.
Alguns conceitos foram estabelecidos após esses estudos iniciais.
a) A capacidade de adquirir novas memórias (porção medial dos lobos temporais) é função distinta de outras capacidades de percepção e cognição. Ou seja, o encéfalo separa suas funções intelectuais e de percepção da capacidade de armazenamento de dados advindos de novas experiências.
b) Os lobos temporais não desempenham função na memória imediata, podendo ser mantido diálogos ou mesmo reter imagens ou números por um pequeno período de tempo.
c) O prejuízo na retenção da memória de longo prazo não necessiramente afeta a memória não declarativa, pois mesmo sem se lembrar como aprendeu recentemente algo, um paciente com amnésia anterógrada ainda poderá executar tarefas seguidamente melhores após treinamentos., mesmo que não se recorde de como aprendeu!
As evidências apontam que ao lado da memória armazenada nos lobos temporais, atua também os lobos frontais (em especial o direito) no processo da memória episódica. Essas evidências surgiram do caso de K.C. que após acidente com motocicleta teve lesões que envolveram lobos temporais mediais (causando amnésia retrógrada) e total amnésia de fatos ocorridos em sua vida, em virtude de lesão também nos lobos frontais. De fato, os lobos frontais são lentos no amadurecimento em crianças e são os primeiros a serem afetados pela senectude.
Nesse contexto, seja única ou múltipla em sua origem, a síndrome amnésica é de natureza seletiva, pois, embora os pacientes amnésicos não consigam se lembrar da maioria dos eventos que experienciam no dia-a-dia, muitas funções de aprendizagem e memória estão preservadas, como a capacidade de adquirirem habilidades motoras, cognitivas e perceptuais e a capacidade de se beneficiarem do efeito de pré-exposição.
No lobo temporal há um grupo de estruturas de importância para a memória explícita: o hipocampo, as áreas corticiais próximas e as vias que conectam essas estruturas com outras regiões cerebrais. e fato, a consolidação das informações requer a síntese de novo RNA – ácido ribonucleico responsável – e de novas proteínas no hipocampo, que transformam mudanças temporárias na transmissão em modificações persistentes na arquitetura das sinapses. Com o tempo, os sistemas cerebrais superiores também mudam.
Inicialmente, o hipocampo trabalha em conjunto com regiões de processamento sensorial distribuídas pelo neocórtex (inicalmente temporal, a camada mais externa do cérebro) para formar as novas lembranças. Nessa área, as representações dos elementos que constituem um evento de nossa vida estão distribuídas por várias regiões cerebrais, de acordo com seu conteúdo. Por exemplo, informações visuais são processadas pelo córtex visual primário no lobo occipital, na parte posterior do cérebro, enquanto informações auditivas são registradas pelo córtex auditivo, localizado nos lobos temporais.
Quando uma lembrança é formada pela primeira vez, o hipocampo rapidamente combina essas informações distribuídas em uma única memória, agindo como um índice de representações nas regiões de processamento sensorial (como um catálogo provisório de nossa biblioteca). O hipocampo e o córtex subjacente (entorrinal) estão fortemente vinculados com a formação e a evocação da memória, como também registram os níveis de alerta e as emoções, associação entre as diferentes memórias.
À medida que o tempo passa, mudanças celulares e moleculares permitem o fortalecimento de conexões diretas entre as regiões neocorticais, possibilitando o acesso às memórias independentemente do hipocampo. Logo, ainda que danos nessa área ocasionados por lesões ou transtornos neurodegenerativos (como o mal de Alzheimer) prejudiquem a habilidade de formar novas memórias declarativas, o problema não afeta as lembranças de fatos ou eventos já consolidados.
Tanto a percepção de informações como a formação e utilização das memórias a elas relacionadas usam circuitos constituídos por várias estruturas cerebrais intimamente ligadas ao hipocampo, como uma rede neuronal. O hipocampo teria esse papel de organizar (peneirar) a evocação da memória e dos componentes que estão agrupados em diferentes porções corticais encefálicas para reconstituir a totalidade da memória, recordando, relembrando ou fazendo novas aquisições para memória de longo prazo. Em outras palavras, ao lembrarmos de algo, vias neurais são ativadas, e quanto maior a frequência, o cérebro tende a considerar a importância do dado, e converter a informação em uma memória de linga duração.
De fato, como sintetizado pelo Dr. John H. Byrne, o hipocampo está muito envolvido na formação de novas memórias, enquanto as memórias passadas por sua vez, podem ser armazenadas em outras áreas como o corpo neoestriado (memória implícita, como de habilidades e hábitos), o neocortex (primming ou pré-ativação), a amígdala (memória emocional) e o cerebelo (aprendizagem associativa).
Como exemplo desses, o neoestriado, principalmente no núcleo caudado e putâmen, teria um papel importante no estabelecimento do que chamamos de hábito, envolvendo eferências de várias áreas do córtex, incluindo áreas sensoriais, e aferências a estruturas subcorticais que fazem parte do sistema de controle dos movimentos.
As estruturas cerebrais envolvidas na memória implícita dos hábitos certamente abarcam regiões muito mais extensas, além de englobar vários tipos de memória independente da consciência. As habilidades motoras também como exemplo de memória implícita vem sendo associadas a ativação de diferentes áreas do encéfalo durate o aprendizado, como o córtex sensório motor e do neoestriado. Os hábitos se assemelham, e formam componetes de atos como um "desculpe" quase que automático ao esbarrar em uma pessoa ou um obrigado em agradecimento à alguém. Ademais, existem grandes evidências que o cerebelo não somente atue em atividades motoras, mas também possua importante componente de memória responsável pela percepção do fluxo do tempo.
A evocação (ou recuperação) de memórias declarativas envolve a organização dos traços de memória em uma sequência coerente no tempo (fenômeno chamado de integração temporal), ocorrendo principalmente através de pelo menos seis estruturas cerebrais interligadas: o córtex pré-frontal, o hipocampo, os córtices entorrinal, parietal e cingulado anterior e a amígdala basolateral. O córterx entorrinal está situado muito próximo do hipocampo, interliga-se ao córtex cerebral através de um número grande de fibras nervosas, bem como a amígdala cerebral ou núcleo amigdalino, O córtex entorrinal possui conexões de idade e volta com o córtex, a amígdala e o hipocampo. A amígdala cerebral, também fica no sistema límbico, e é um conjunto de células nervosas juntas. Esta situada dentro da região antero-inferior do lobo temporal, próxima ao hipocampo se interconectando com o mesmo. Também está próximo dos núcleos septais, da área pré-frontal e do núcleo dorso-medial do tálamo.É importante lembrar que o material que lembramos nunca é o mesmo que fixamos, pois ele sofre alterações no processo de conservação, pois cada indivíduo acrescenta características pessoais aos elementos armazenados.
Contudo, em termos práticos, temos que compreender que existe o envolvimento de vários sentidos no decorrer da aprendizagem. Por exemplo, todas as vezes que você estuda ocorre aumento da atividade do hipocampo, e quando pratica algo, outras habilidades como a motora, passa a envolver o corpo estriado, o neocortex e o cerebelo, e as "emoções' relacionadas à essa aprendizagem com o envolvimento da amígdala (sistema límbico).
De fato, a maior parte do que aprendemos e memorizamos baseia-se na capacidade da aquisição e recuperação, e ambas possuem como potencializadores o fenômeno de associações. Imaginemos alguém que você tenha se apaixonado. O cheiro ativa as partes olfativas do córtex, sua imagem ativa as áreas visuais do córtex e detalhes do corpo ativa o seu tato. Quando esses vínculos associativos entre os sentidos se formam, serão mais facilmente hábeis na recordação, conjunta de algumas das características mais marcantes. As associações dessas sensações diferentes fazem com que muitas células nervosas, em áreas diferentes do cérebro sejam ativadas ao mesmo tempo.
Os estímulos sensoriais provindos do meio externo (imagens, sons, cheiros, sabor) são codificados em sinais elétricos e passam por um circuito, do qual a amígdala é um componente, chamado de sistema límbico.
O sistema límbico guarda íntima relação com então com a memória emocional, permitindo que tais conexões determinem uma forte ligação entre as emoções e os outros diferentes tipos de memórias. A descoberta do sistema límbico se iniciou com Paul Broca, ao se referir a uma região localizada nas proximidades da glândula pineal, como um limbo ou na margem de outras estruturas já conhecidas. No entanto, dando sequência às descobertas de Papez iniciadas em 1939, foi que o fisiologista MacLean em 1949 conceituou o sistema límbico como é conhecido hoje. Conjuntamente com o hipotálamo e a área pré-frontal, o sistema límbico participa na contextualização da memória e nos processos emocionais, sendo por isso a base dos impulsos da motivação, inclusive da motivação para o processo de aprendizagem, bem como as sensações de prazer ou mesmo punição (aversão). Além disso, o sistema límbico compreende uma série de estruturas cerebrais relacionadas também aos comportamentos sexuais e homeostásicos.
De fato, o medo aprendido não é eliminado com lesões no hipocampo, mas com lesões bilaterais da amígdala, o que sugere que essa estrutura possa servir de eixo ou potencialmente armazenar algum tipo de memória, tanto emocionais positivas como negativas.
Como uma espécie de memória, essas emoções também possibilitam planejamentos e reconhecimentos futuros, participando evolutivamente de memórias não declarativas. E com isso, hoje é bem evidente que emoções como a ansiedade, medo ou determinadas afinidades (em conjunto manifestações evolutivas primitivas) podem afetar a memória e por óbvio, o aprendizado.
Com isso crescem as linhas que defendem a necessidade de um aprendizado emocional, verdadeiras mudanças na forma como nos sentimos a respeito daquilo que somos expostos, o qual é em grande parte, produto de intenso trabalho para novas aquisições de memória. Se mudamos a forma como recordamos, aprendemos e damos significado ao mundo à nossa volta, mudamos a nós mesmos. E se essa mudança for para um mundo mais altruísta e melhor de se viver em conjunto, por que não mudarmos a começar pela forma como pensamos?
As regiões cerebrais envolvidas no aprendizado e no armazenamento de habilidades motoras são as regiões do encéfalo relacionadas à motricidade, quais sejam, o cerebelo e os núcleos da base (conhecido também como corpo estriado)